Machado de Assis e a Ironia em ‘Miss Dollar’

O conto “Miss Dollar”, de Machado de Assis, apresenta uma narrativa que, à primeira vista, pode parecer uma história leve sobre o romance entre o Sr. Mendonça e D. Cláudia. No entanto, é possível identificar como Machado de Assis constrói uma crítica sutil às convenções sociais e aos valores superficiais, sobretudo a respeito do casamento e à percepção das aparências, utilizando-se de sofisticados recursos narrativos e gramaticais.

Um dos aspectos técnicos mais notáveis no conto é a utilização do narrador intruso. Esse tipo de narrador não se limita a contar a história de maneira objetiva, mas se insere no texto, comentando e dialogando com o leitor, revelando a ironia machadiana que permeia toda a narrativa. No trecho inicial, por exemplo, o narrador declara: “Em uma casa da Rua do Lavradio houve, anos atrás, uma reunião elegante, cujo fim era dançar até o romper do dia.” A forma como ele estabelece a cena, com uma construção temporal indefinida e aparentemente despretensiosa, já sinaliza o tom leve da narrativa, mas a escolha da palavra “elegante” denuncia a primeira camada de crítica às aparências e aos valores burgueses, que serão desdobrados ao longo da história.

Os desvios estruturais da narrativa principal (anacolutos e digressões) como quando o narrador se detém para descrever a beleza de Miss Dollar ou comentar sobre o ceticismo de Mendonça em relação ao amor, servem como uma estratégia para desviar o foco da trama principal e ressaltar as convenções e as expectativas sociais. Esses anacolutos são ferramentas que, ao interromper o fluxo narrativo, revelam a intenção do autor em criar um distanciamento crítico entre o leitor e os acontecimentos, expondo a artificialidade da história de amor em construção.

A própria figura de Miss Dollar é carregada de simbolismo. A escolha do nome do animal já traz uma crítica implícita à valorização excessiva do materialismo: “Dollar” remete diretamente ao dinheiro, o que sugere que as relações humanas, assim como o apreço pela cadela, são muitas vezes guiadas por interesses financeiros e não por sentimentos genuínos. Essa crítica se revela de forma mais explícita no desenrolar da trama, à medida que Mendonça, inicialmente descrente do amor, se vê atraído por D. Cláudia não apenas pela sua beleza, mas pela projeção de um ideal socialmente aceito de mulher e de casamento.

No aspecto gramatical, é importante notar o uso frequente da ironia verbal, que se manifesta nas escolhas léxicas do narrador. Um exemplo claro disso é a maneira como ele descreve o processo de enamoramento de Mendonça por D. Cláudia: “Mendonça não era homem que se apaixonasse por uma mulher por capricho.” A frase, à primeira vista, parece simples, mas a escolha da palavra “capricho” contrasta com a ação subsequente do personagem, que, ao final, acaba justamente se apaixonando de forma impulsiva e influenciado por fatores superficiais, como a posse do cachorro – ou seja, por capricho. Essa inversão irônica é uma marca do estilo machadiano, que constantemente desafia as expectativas do leitor, fazendo-o refletir sobre o comportamento humano.

Além disso, o conto apresenta uma interessante construção da voz feminina. Embora D. Cláudia seja objeto do desejo de Mendonça e, de certa forma, instrumentalizada pela narrativa para fazer avançar a trama, Machado de Assis lhe concede certo grau de agente. Ela, por exemplo, não se apaixona imediatamente por Mendonça e demonstra um controle significativo sobre sua própria posição na sociedade. No entanto, sua figura ainda carrega o peso das convenções de gênero da época, o que é sublinhado por sua relação com Miss Dollar, uma cadela de raça e valiosa, símbolo de status e feminilidade idealizada.

Em termos de estrutura narrativa, “Miss Dollar” se vale de um enredo clássico de romance — o encontro fortuito entre um homem e uma jovem atraente —, mas surpreende através da ironia e da crítica social. A reviravolta final, em que Mendonça se rende ao casamento, ao invés de representar um triunfo do amor, parece confirmar a tese inicial do narrador sobre o papel das aparências e dos interesses sociais nas relações humanas.

Por fim, Machado de Assis transforma, neste conto, um enredo aparentemente simples em um comentário mordaz sobre a sociedade brasileira do século XIX. O texto, com sua leveza e humor, esconde a crítica ao comportamento burguês, às convenções sociais e às relações humanas mediadas por interesses materiais, demonstrando a maestria do autor em equilibrar forma e conteúdo.

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Ou você pode ouvir o primeiro capítulo abaixo e acompanhar todos os episódios que serão publicados nos próximos dias.


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Resposta

  1. Avatar de HELDER QUEIROZ

    Bom dia!

    obrigado mais uma vez pelo post. Ele me fez revisitar Machado e Miss Dollar.

    Sempre bom!

    Como curiosidade, na minha edição o amor de Dr. Mendonça é por Margarida; e não há referência à D. Claudia. Seria questão de edição?

    Ótima semana para você

    Helder Queiroz

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